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A Linguagem como Fábrica do Mundo

  • carlospessegatti
  • há 2 dias
  • 4 min de leitura

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Dos Fundadores da Semiótica a Kaspar Hauser: Um Ensaio sobre Signo, Silêncio e Realidade


A linguagem é uma máquina de mundo. Em cada signo, em cada som, em cada gesto, habita a possibilidade de tornar visível o invisível — de ordenar o caos em discurso, de dar forma ao informe. Neste ensaio, revisitamos os pilares fundadores da Teoria dos Signos e da Linguística moderna, a partir de nomes como Ferdinand de Saussure, Charles Sanders Peirce, Charles Morris e Louis Hjelmslev.


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Por fim, adentramos a leitura crítica de Izidoro Blikstein, professor da Unicamp, que em seu livro Kaspar Hauser ou A Fabricação da Realidade lança luz sobre o célebre filme de Werner Herzog, revelando a profunda articulação entre linguagem, experiência e exclusão.


1. Ferdinand de Saussure: a Linguística como sistema

O linguista suíço Ferdinand de Saussure (1857–1913) é considerado o pai da Linguística estrutural. Em seu curso de linguística geral, publicado postumamente, ele propõe uma ruptura com o estudo histórico comparativo das línguas, para propor a análise sincrônica do sistema linguístico.


Saussure define a linguagem como um sistema de signos constituído por duas faces inseparáveis: o significante (a imagem acústica, o som) e o significado (o conceito). Essa relação é arbitrária — não há conexão natural entre palavra e coisa. O signo, portanto, existe dentro de um sistema de diferenças, em que o sentido emerge da oposição entre signos.


Essa noção leva à ideia de que a linguagem não reflete a realidade, mas a constrói por meio de suas articulações internas.


2. Charles Sanders Peirce: o signo como processo

Nos Estados Unidos, Charles Sanders Peirce (1839–1914) propôs uma teoria triádica do signo, fundamental para a semiótica moderna. Para ele, o signo é:

  • Representamen (o signo em si),

  • Objeto (aquilo a que o signo se refere),

  • Interpretante (o efeito interpretativo gerado no receptor).

Peirce classifica os signos em três categorias fundamentais:

  • Ícone: mantém semelhança com o objeto (ex: um retrato),

  • Índice: mantém uma relação causal ou física (ex: fumaça como índice de fogo),

  • Símbolo: relação arbitrária e convencional (ex: a palavra "árvore").

A semiose peirceana é processual e infinita, pois cada interpretante pode se tornar um novo signo em uma cadeia sem fim.


3. Charles Morris: signos e comportamento

Morris (1901–1979), filósofo e semiótico estadunidense, desenvolveu uma abordagem behaviorista da semiótica, dividindo-a em três ramos:

  • Sintaxe: relação entre signos,

  • Semântica: relação entre signos e objetos,

  • Pragmática: relação entre signos e seus intérpretes.

Sua preocupação era integrar o signo ao comportamento humano, reforçando o caráter funcional e comunicativo da linguagem. Embora menos filosófica que a de Peirce, sua abordagem teve grande impacto na teoria da comunicação.


4. Louis Hjelmslev: as camadas da linguagem

Louis Hjelmslev (1899–1965), linguista dinamarquês, amplia o pensamento saussuriano ao propor uma distinção entre expressão e conteúdo, cada um deles com seus planos de forma e substância. Para ele, a linguagem é uma forma de formas — uma organização que se sobrepõe tanto ao som (substância da expressão) quanto ao sentido (substância do conteúdo).


Essa perspectiva, fortemente influenciada pelo formalismo, interessa por como a linguagem estrutura a experiência do mundo, e por isso dialoga com o estruturalismo europeu posterior.


5. Izidoro Blikstein: Kaspar Hauser e a fabricação da realidade

Izidoro Blikstein, professor da Unicamp, é um dos grandes estudiosos brasileiros da linguagem. Em seu livro Kaspar Hauser ou A Fabricação da Realidade, Blikstein analisa o filme de Werner Herzog à luz da linguagem como mediação fundadora da experiência humana.


O filme narra a história real (e profundamente simbólica) de Kaspar Hauser, um jovem que passou a vida inteira isolado, sem contato com a linguagem ou com o mundo exterior, até ser libertado e confrontado com a sociedade.


Blikstein mostra como a ausência da linguagem em Kaspar Hauser não é apenas ausência de comunicação, mas de mundo. Sua experiência sensível está bloqueada, não por falta de órgãos, mas por não possuir o código que organiza o sensível. Quando aprende as palavras, não as entende como signos da realidade, mas como "coisas" — e isso ilustra de modo dramático o processo pelo qual a linguagem fabrica a realidade.


O livro também discute o modo como a sociedade projeta em Kaspar suas fantasias, medos e expectativas — o "diferente" que deve ser domesticado. O "selvagem" precisa aprender a linguagem e os códigos para ser aceito, e, ainda assim, permanece estranho. Kaspar não domina os signos; os signos o dominam.


O signo e o silêncio

Ao articular os pensamentos de Saussure, Peirce, Morris e Hjelmslev com a leitura de Blikstein sobre Kaspar Hauser, compreendemos que a linguagem não é mero instrumento neutro, mas um dispositivo ontológico: ela fabrica aquilo que percebemos como real, como possível, como humano.


A ausência de linguagem não é ausência de voz — é ausência de mundo possível. Por isso, a figura de Kaspar Hauser nos comove: ele é o espelho trincado da nossa própria condição. Somos o que dizemos, mas também o que não conseguimos dizer.


No silêncio de Kaspar ecoa o ruído do mundo que nos forma — e que talvez nos deforme. O signo é mediação, mas também fronteira. E o pensamento crítico começa justamente aí: quando nos damos conta de que o mundo que falamos é sempre uma construção, nunca uma evidência.


 
 
 

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