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Mar Negro: a travessia como linha de fuga

  • carlospessegatti
  • há 1 dia
  • 7 min de leitura



Entre o Real e o Mítico: Uma Análise de Mar Negro, de Vinicius Gericó


Por Callera


Na esteira das mais instigantes manifestações literárias contemporâneas, Mar Negro (Editora UiClap) emerge como uma obra singular, desafiando os limites do romance tradicional ao articular, em um só movimento, ficção científica, realismo mágico e especulação filosófica. Lançado em dezembro de 2024, pelo estreante Vinicius Gericó, o livro já ocupa um lugar proeminente na cena literária brasileira, não apenas por sua inventividade estilística, mas sobretudo por sua vocação para investigar as zonas limítrofes entre identidade, consciência e realidade.


I. O Enredo como Estrutura de Desconstrução

A narrativa acompanha Vitor, um homem comum que, após sobreviver a um acidente de avião — ou talvez, a uma falha na própria tessitura da realidade —, desperta em um novo corpo e numa vida aparentemente dissociada da que conhecia. A partir daí, desenvolve-se uma jornada de descoberta que transcende o esquema clássico do "herói em busca de si". Aqui, a busca é precisamente pela noção do "si", dissolvido nas múltiplas camadas da existência.


O “Mar Negro”, que dá nome à obra, funciona como metáfora e cenário: um espaço metafísico onde as fronteiras entre mundos, estados de consciência e dimensões da realidade são fluidas, instáveis, porosas. Mais do que um lugar, o Mar Negro é uma travessia — um fluxo ontológico.


II. Temáticas Filosóficas: Identidade, Realidade e a Desconstrução do Eu

A leitura de Mar Negro instaura uma experiência filosófica. A identidade é despojada de sua estabilidade moderna, para ser entendida como performance, como devir, como fluxo rizomático — e aqui a referência a Gilles Deleuze e Félix Guattari se impõe naturalmente. Para Deleuze, "não há identidade, apenas um conjunto de singularidades pré-individuais" (Diferença e Repetição, 1968). Assim, Vitor não se transforma; ele é, simultaneamente, múltiplas possibilidades de ser.


Essa visão se articula com problemáticas contemporâneas sobre a natureza da realidade: vivemos uma realidade objetiva ou uma construção subjetiva e socialmente mediada? Gericó aproxima-se de teorias da física, como a hipótese do multiverso e a ideia de realidades paralelas, mas também flerta com concepções ancestrais, próximas do esoterismo e do misticismo, onde o véu da realidade pode ser rasgado pela experiência do limiar.


Nesse ponto, Michel Foucault ilumina:

"A identidade é uma ficção reguladora produzida por dispositivos de poder e saber" (A História da Sexualidade, 1976).


A travessia de Vitor é, assim, também uma insurreição contra o biopoder que aprisiona os sujeitos em categorias fixas, oferecendo como alternativa uma existência nômade e fluida.


III. Mitologia Brasileira como Fundamento Ontológico

Um dos pontos mais notáveis da obra é a incorporação de elementos da mitologia brasileira, sobretudo os que habitam o inconsciente coletivo das cidades em que a narrativa se passa — Salvador e Rio de Janeiro. O "Mar Negro" evoca o Atlântico profundo, território mítico das travessias e das perdas, mas também do renascimento, elemento central nas culturas afro-brasileiras e na cosmologia iorubá.


A presença simbólica das águas negras remete a Exu, figura de passagem e encruzilhada, que, como o Mar Negro, instaura a possibilidade de deslocamento e transformação. É a encruzilhada como espaço ontológico: não a escolha entre caminhos, mas o espaço onde todos os caminhos coexistem.


Com isso, Gericó propõe uma ruptura com a tradição eurocêntrica da ficção especulativa, criando uma tessitura mítica própria, que é ao mesmo tempo brasileira, americana e universal. Como Deleuze e Guattari defendem, "a literatura menor não é a literatura de uma minoria, mas aquela que produz uma desterritorialização da língua maior" (Kafka: Por uma Literatura Menor, 1975). Mar Negro é exemplar deste gesto desterritorializante.


IV. Estilo e Estrutura Narrativa: A Experiência do Desalinho

Estilisticamente, Mar Negro é construído a partir de fragmentos, elipses e imagens oníricas que reforçam a instabilidade da experiência narrada. O autor recorre a uma linguagem que ora se aproxima do fluxo de consciência — em ressonância com Virginia Woolf e James Joyce —, ora da poesia concreta, como se cada palavra fosse também matéria plástica.


A estrutura fragmentária e a recusa de uma linearidade clássica intensificam a experiência de deslocamento do leitor, que, como o protagonista, precisa se desorientar para encontrar um sentido — ou assumir a ausência de qualquer centro fixo. Deleuze nos lembra: “não se deve confundir a trajetória de um devir com uma trajetória de desenvolvimento ou de evolução; trata-se de uma linha de fuga” (Mil Platôs, 1980). Vitor, ao atravessar o Mar Negro, não evolui, mas se esquiva, foge, reconfigura.


V. Realismo Mágico e Ficção Científica: O Duplo Regime Estético

A obra articula-se também na tradição do realismo mágico latino-americano, na qual o insólito é parte da ordem do mundo, mas, ao mesmo tempo, introduz elementos de uma ficção científica especulativa, à la Philip K. Dick, questionando a própria ontologia da experiência.


Esta fusão produz um efeito estético potente: o leitor é confrontado com uma realidade que não se limita ao visível ou ao verificável, mas que aceita o enigma, o mistério e a dimensão espiritual como categorias igualmente válidas de conhecimento.


Como Foucault sugere, “o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar” (Microfísica do Poder, 1979). Mar Negro corta, fende, desmonta a ilusão da transparência do real e nos conduz a uma zona de opacidade, onde o conhecimento é sempre um arriscar-se.


VI. A Relevância de Mar Negro no Contemporâneo

Num momento histórico marcado pela crise das identidades fixas, pelo colapso das grandes narrativas e pela intensificação da virtualização das relações humanas, Mar Negro oferece uma metáfora precisa de nosso tempo: somos todos, de algum modo, corpos em trânsito, subjetividades fragmentadas à deriva num mar cujas margens já não são visíveis.


Neste sentido, a obra dialoga diretamente com a Teorização do Contemporâneo — campo no qual tenho insistido em minhas reflexões —, ao expor, sem concessões, a complexidade da experiência atual, marcada pela instabilidade, pela fluidez e pela necessidade de reconfigurações contínuas.


Como Deleuze e Guattari propõem, cabe a nós criar “máquinas de guerra” — agenciamentos que escapem às capturas e produzam novos modos de existir.


Mar Negro é uma dessas máquinas, abrindo brechas na linguagem e no pensamento.


VII. Considerações Finais: Leitura e Experiência Filosófica

Recomendo Mar Negro não apenas como um romance, mas como uma experiência filosófica e estética indispensável. Ele se oferece como um convite para aqueles que desejam pensar — e sentir — para além das certezas. Para os que, como eu, buscam na arte uma via para expandir as fronteiras da experiência humana e adentrar territórios ainda inexplorados da consciência.


Este livro se insere, assim, na linhagem das obras que não apenas contam histórias, mas desconstroem as próprias categorias de história, identidade e realidade.


Ler Mar Negro é, enfim, atravessar o Mar Negro: um gesto de coragem filosófica, estética e existencial.


Callera

Músico, pensador e explorador das fronteiras entre arte, ciência e filosofia.


Análise mais detalhada do livro


Por Atena Cybele


“Fazer rizoma e não raiz, jamais plantar! Não se enraíza: há de se produzir hastes e filamentos, conjugar, conectar, prolongar...”— Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil Platôs


“O saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar.”— Michel Foucault, Microfísica do Poder


Introdução — O chamado do Mar Negro

O Mar Negro é um chamado, uma fenda, uma vertigem. A narrativa proposta por Vinícius Gericó em Mar Negro não é apenas um romance: é uma travessia ontológica, um deslocamento radical de formas, identidades e corpos. Aqui, como na filosofia de Deleuze e Guattari, a existência não se define pela estabilidade das raízes, mas pela potência das linhas de fuga: “não se enraíza: há de se produzir hastes e filamentos...” O mar, como metáfora máxima do movimento, convoca à deriva.


Na história, o protagonista, Vitor, vê-se lançado a uma experiência abissal: a travessia do Mar Negro, onde seu corpo morre e renasce, transportado para uma nova existência. A ficção parece operar segundo o princípio foucaultiano: “o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar”. A passagem do Mar Negro não traz explicações, mas cortes; não esclarece, mas fere, fratura, abre.


Este ensaio propõe uma leitura rizomática de Mar Negro, explorando-o como um romance-fenda, uma narrativa que subverte as expectativas de linearidade e identidade, convidando à experiência radical do devir.


1. O mar como figura da mutação: Heráclito nas águas negras

“No mesmo rio entramos e não entramos, somos e não somos.”— Heráclito de Éfeso


O Mar Negro é o espaço simbólico da mutação incessante. Como no fragmento de Heráclito, o protagonista não atravessa o mesmo mar duas vezes, e ele próprio não é o mesmo antes e depois da travessia. A água negra é o elemento que dissolve, transmuta, apaga e redesenha as formas da existência.


O romance trabalha com essa dimensão heraclitiana da impermanência: o corpo que emerge da travessia não é o mesmo que nela afundou. A vida não é substância, mas fluxo: um conjunto de forças, desejos e memórias em trânsito.


2. A travessia como devir: Deleuze e a fuga como método


“Devir não é chegar a ser, nem evoluir. Devir é uma linha de fuga.”— Gilles Deleuze e Félix Guattari


Vitor não está simplesmente mudando de lugar ou adaptando-se a novas circunstâncias; ele está em devir. A travessia do Mar Negro é um corte radical na continuidade da identidade, um processo de fuga que não visa um ponto final, mas que se afirma como movimento perpétuo.


O romance ilustra de maneira exemplar o conceito deleuziano de linha de fuga: não um destino, mas uma abertura, um rizoma que se expande para fora das estruturas que antes o aprisionavam. O mar, aqui, não é apenas cenário, mas método: o devir-aquático da subjetividade.


3. O saber que corta: Foucault e a estética da existência


“A vida como uma obra de arte.”— Michel Foucault


Ao atravessar o Mar Negro, Vitor não apenas sobrevive: ele reinventa-se. A narrativa pode ser lida, assim, como uma estética da existência foucaultiana: a vida não como algo dado, mas como uma obra a ser esculpida, composta, fabricada.


O Mar Negro é, simultaneamente, o espaço do corte e da criação. Não há um retorno à origem, mas a abertura a um território desconhecido. O saber — sobre si, sobre o mundo — não é aqui uma forma de controle, mas um gesto criativo, um corte que possibilita novas formas de vida.


4. Entre Empédocles e o abismo: união e dispersão


“O ódio separa e o amor une, e assim as coisas se tornam múltiplas ou únicas.”— Empédocles de Agrigento


A travessia também é um processo de recomposição cósmica. Assim como, para Empédocles, o amor e o ódio são forças que movem a fusão e a separação dos elementos, em Mar Negro o protagonista experimenta a dispersão do que foi e a união do que será.


O Mar Negro é, nesse sentido, uma espécie de alquimia simbólica: dissolve as formas e permite sua recomposição sob outros arranjos. O corpo que emerge não é apenas outro corpo: é uma outra combinação de forças e afetos.


5. Fragmento poético — a última margem

No Mar Negro, não há bússolas, nem margens fixas. Apenas o rumor abissal de todas as vidas que não vivemose de todas as mortes que não morremos.


Este fragmento resume a experiência narrada em Mar Negro: uma travessia em que o sujeito se desfaz como unidade e se refaz como multiplicidade. O Mar Negro é a metáfora desse limiar radical, dessa zona de indeterminação onde vida e morte, identidade e alteridade, se misturam.


 
 
 

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