Andrei Tarkovski – O Tempo Esculpido na Imagem
- carlospessegatti
- há 6 dias
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Cinema — A Arte que Sonha o Mundo
Andrei Tarkóvski: o tempo esculpido na imagem
Quando falamos de Tarkóvski falamos de tempo, memória e espírito – e de um cinema que recusa o consumo rápido para instaurar experiências. “O fator dominante da imagem cinematográfica é o ritmo, a expressão do curso do tempo dentro do plano”, escreveu o próprio Andrei em Esculpir o Tempo.
Vida e poética em poucas linhas
Andrei Arsênievich Tarkóvski nasceu em 4/4/1932 na Rússia soviética e morreu em 29/12/1986, em Paris. Seus filmes foram celebrados no Ocidente e, não raro, enfrentaram cortes e censura na URSS. O conjunto de sete longas define uma obra rarefeita e decisiva: A Infância de Ivan (1962), Andrei Rublev (1966), Solaris (1972), O Espelho (1975), Stalker (1979), Nostalgia (1983) e O Sacrifício (1986).
As ideias-força: tempo, matéria e transcendência
Planos longos, travellings lentos, dilatação temporal: não para “mostrar” mais, mas para viver o tempo.
Elementos naturais como dramaturgia sonora e visual: água, fogo, vento, lama, ferrugem e chuva “dentro de casa” – a matéria vibra como memória do mundo.
Sonoridade orgânica + música sacra/eletrônica: o ruído do ambiente é partitura; Bach convive com síntese eletrônica (Eduard Artemyev).
Metafísica do cotidiano: o milagre surge do banal; a zona sagrada não está “além”, mas aqui, quando o olhar desacelera.
Filme a filme
1) O Roqueiro e o Violino (1961, média-metragem estudantil)
O esboço da ética tarkovskiana: um menino violinista e um operário do rolo compressor criam uma amizade improvável. Dois mundos — delicadeza e brutalidade — reconciliam-se pela arte. O cotidiano já é fábula, o industrial já é poesia. A cor e a luz antecipam o modo como Tarkóvski faz a realidade “transudar” sentido.
2) A Infância de Ivan (1962)
A guerra pelos olhos de um menino-sentinela. Estruturas oníricas (flashes de infância, travessias aquáticas, raízes, troncos molhados) contrapõem sonho e devastação. O anti-épico desromantiza o heroísmo: o tempo perdido não volta, apenas ecoa como fantasma sonoro. Esteticamente, o filme já mostra a métrica da duração – e como a água guarda memórias.
3) Andrei Rublev (1966)
Episódios da Rússia medieval e o percurso espiritual do pintor de ícones. O filme foi retalhado e retido por anos; sua versão integral circulou primeiro no Ocidente. A sequência da fundição do sino é uma aula de materialidade e fé: o saber técnico como rito; a comunidade como sujeito; o som do sino como epifania acústica. O epílogo em cores saturadas dos ícones suspende o tempo histórico e devolve a imagem ao sagrado.
4) Solaris (1972)
Ficção científica filosófica: no planeta-oceano, a consciência gera encarnações do desejo e da culpa. A estação espacial é claustro; o mar pensante é espelho do inconsciente. O ritmo, quase litúrgico, questiona a tecnocracia: diante do desconhecido, ciência sem ética vira nova metafísica vazia. O híbrido sonoro (Bach + eletrônicos) produz uma teologia do cosmo: o espaço é um organismo que ouve. (Veja Esculpir o Tempo para a reflexão do autor sobre o filme.)
5) O Espelho (1975)
Colagem autobiográfica: memórias pessoais, poemas do pai Arséni, cinejornais e sonhos formam um fluxo associativo. A mesma atriz encarna mãe e esposa, dissolvendo identidades em camadas de lembrança. Aqui, o cinema torna-se “memória em estado líquido”: a matéria – fogo e chuva – escreve o que a linguagem não captura.
6) Stalker (1979)
Três homens — o Stalker, o Escritor, o Professor — cruzam um território interdito em busca de um quarto que realiza desejos. Filosofia em forma de travessia: crença vs. cinismo, arte vs. utilitarismo, ciência vs. ética. A passagem do sépia ao verde úmido da Zona marca uma mudança de regime ontológico: lá, o mundo respira por si. A água estagnada, a ferrugem, o gotejar, os trilhos… a entropia canta. O plano final com a filha (força mental? milagre? ruído de trem?) condensa o enigma: o sagrado é uma vibração.
7) Nostalgia (1983)
Exílio e saudade: um poeta russo na Itália sente que a casa interior se rompe. O ritual do homem que atravessa a piscina com uma vela acesa é o coração do filme: manter a chama viva apesar do vento do mundo. A própria preparação virou documentário em Tempo de Viagem (Voyage in Time, 1983), onde Tarkóvski e Tonino Guerra discutem estética, lugares e milagres discretos.
8) O Sacrifício (1986)
Em meio ao medo de uma guerra nuclear, Alexander promete sacrificar tudo se a catástrofe for evitada. A célebre queima da casa — um plano-limite de duração — é ato estético e teológico: dar o mundo para salvar o mundo. O epílogo, com o menino e a árvore ressequida, propõe uma ética da paciência: regar o impossível, dia após dia.
Técnica e linguagem: a arquitetura do “tempo vivo”
Câmera como consciência: travellings laterais que deixam a matéria revelar-se; profundidade de campo para que as relações se desenhem no espaço.
Som como “respiração” do plano: água, vento, chamas, trem; ambiências que não ilustram – significam.
Cor e textura como estados mentais: sépia/monocromo para o “mundo gasto”; verdes e ocres úmidos para a Zona e a natureza plena.
Montagem rarefeita: corte como exceção; a regra é o tempo contínuo.
Leituras críticas breves
Materialismo histórico & Tarkóvski: longe de um espiritualismo ingênuo, há crítica da alienação tecnológica e da racionalidade instrumental (o Professor em Stalker, a burocracia de Solaris). O “milagre” é relacional (coletivo, comunitário), não mercadoria.
Pós-apocalíptico sem explosões: a ruína já está aqui — na ferrugem, no vazamento, na lama que engole as cidades. O apocalipse é lento, entrópico.
Arte como trabalho: a fundição do sino em Andrei Rublev revela o saber popular como força produtiva simbólica; o som resultante é mais que metal: é coesão social.
Para começar (fontes essenciais)
Biografia e panorama geral; livro-chave e guias de entrada: Censura e circulação de Andrei Rublev:
Documentário Tempo de Viagem (Voyage in Time):
Motivos recorrentes (água/fogo, sonho/memória):
Tarkóvski filmou o invisível do real – e, ao fazê-lo, nos devolveu um tempo respirável. Para a esta série ele é o elo perfeito entre ontologia e oficina: um cinema que pensa o mundo enquanto fabrica som e imagem como matéria viva. Se Wenders nos abriu a estrada, Tarkóvski nos dá o ritual.
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