Minima Moralia: Reflexões a partir da vida danificada
- carlospessegatti
- há 3 dias
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A Era do Liso: Da Vida Danificada à Sociedade do Cansaço
Adorno e Byung-Chul Han em diálogo: negatividade, sofrimento e a desertificação da subjetividade no tempo da positividade obrigatória.
O título “A Era do Liso” é uma provocação inspirada, principalmente, em Byung-Chul Han, que em vários de seus livros (como A Sociedade da Transparência, Psicopolítica e No Enxame) denuncia o que ele chama de excesso de positividade, transparência total e nivelamento das experiências humanas na era digital.
O que é esse “liso”?
Liso aqui é o oposto do rugoso, denso, opaco, contraditório, espesso. Na teorização de Han:
Vivemos numa cultura da imagem lisa, polida, sedutora, clean, sem profundidade nem atrito.
O sujeito liso é aquele que se expõe constantemente, mas não se aprofunda em nada — um “eu” formatado para likes, que evita o conflito e não suporta a negatividade ou a complexidade.
A sociedade do cansaço se constrói sobre essa lógica: tudo precisa ser eficiente, transparente, rápido, agradável, mesmo que isso custe o esvaziamento da experiência humana.
Han não usa diretamente a expressão "era do liso", mas ela deriva de suas ideias — e também dialoga com o conceito adorniano de “vida danificada” e cultura padronizada.

“A vida não vive."
Com essa frase cortante, Theodor W. Adorno inicia Mínima Moralia, obra escrita entre as ruínas do século XX, no exílio, com a lucidez de quem observa o colapso da experiência humana sob o capitalismo avançado. A frase, que parece ecoar como epitáfio da subjetividade, ressoa — talvez ainda mais ruidosamente — em nosso presente hiperdigital.
Se Adorno visava desmascarar a domesticação da vida sob o império da indústria cultural e da razão instrumental, Byung-Chul Han, filósofo do século XXI, atualiza esse diagnóstico ao nomear um novo paradigma: o da positividade absoluta. A passagem da "vida danificada" para a "sociedade do desempenho" marca uma inflexão decisiva na história do sofrimento.
Ambos, no entanto, falam do mesmo vazio — mas com vestimentas diferentes.
1. A negatividade como resistência
Para Adorno, pensar é sempre um gesto de resistência. Resistência à mercadoria, à coação da normalidade, ao automatismo do cotidiano. O pensamento, para ser crítico, não pode conciliar-se com o mundo como ele é. Deve ser negatividade pura — fratura, desconforto, inconformismo.
Sua filosofia é uma ética do não: não ao consenso, não à adaptação, não à reconciliação forçada com a realidade danificada. Por isso sua escrita fragmentária, seus aforismos como relâmpagos de lucidez. Em um mundo onde tudo é embrulhado e vendido como totalidade funcional, o fragmento é a forma da verdade.
Han, por sua vez, aponta que essa negatividade foi domesticada. Hoje, a sociedade já não reprime: ela estimula. Já não proíbe: convida. O sujeito não é mais vigiado: ele se autoexplora com prazer. A positividade é a nova armadilha. O “sim” virou comando. A crítica cedeu lugar à performance.
2. A transição: do controle repressivo ao controle sedutor
Adorno identificava o poder como coercitivo, normativo e industrial: o rádio, o cinema, a escola, a propaganda — aparelhos que moldavam o sujeito. Han vê algo mais fluido, mais eficaz: o poder é agora “inteligente”, amigável, flexível, digital. Ele se apresenta como liberdade.
A dominação não se faz mais pela dor, mas pelo cansaço. A subjetividade não é reprimida — ela é dissolvida na obrigação de ser visível, produtiva, otimista, saudável, resiliente. A positividade virou imperativo moral.
O sofrimento, que antes revelava o conflito com o mundo (e por isso era motor da crítica), hoje é patologizado. A dor é falha pessoal. A tristeza virou desvio. O silêncio, ameaça.Tudo deve se mostrar: o rosto, a emoção, o desempenho. A vida virou vitrine.
3. A arte como antídoto: entre ruído e silêncio
Adorno defendia a arte como espaço de negatividade. A obra de arte verdadeira, dizia ele, não consola. Ela recusa sentido fácil. Recusa harmonia. É forma atravessada pelo conteúdo social — mas sem se curvar a ele.
Han, embora menos centrado na estética, aponta que a saturação imagética e a transparência total corroem a potência do invisível. O excesso de luz cega. A arte, hoje, precisa talvez recuperar o segredo, o silêncio, a ausência.
Entre o ruído adorniano e o silêncio haniano, talvez esteja a chave de uma estética do contemporâneo: uma arte que recusa o brilho fácil, que mergulha na sombra, que se mantém opaca.
4. A desertificação da experiência
Ambos denunciam, em última instância, a mesma catástrofe: a desertificação da interioridade.
Adorno via o sujeito sendo esmagado pelas formas sociais reificadas, alienado de si, empobrecido em sua capacidade de sentir, pensar e agir. Han observa esse sujeito transformado em "projeto de si", empreendedor emocional, viciado em feedbacks, incapaz de escutar — sequer a si mesmo.
O tempo se fragmentou. A atenção se dispersou. A contemplação tornou-se impraticável. A interioridade virou algoritmo.
5. Pensar contra: O meu pensamento, entre Adorno e Han
A minha obra não apenas interrompe — ela aponta. Minha música, embora muitas vezes envolta em texturas densas e atmosferas de colapso, não se encerra no diagnóstico sombrio. Ela carrega, ao fundo, a centelha de uma redenção possível. Eu transito entre o ruído e a esperança, entre a entropia e o sentido.
Se Adorno buscava na dissonância a verdade, e Han exige o resgate do silêncio contemplativo, minha música — com raízes no New Age, nos universos progressivos e nas vibrações cósmicas — ergue uma ponte entre crítica e criação.
Trata-se de uma jornada de reconexão: com o tempo perdido, com o corpo invisibilizado, com o cosmos inteligível. Um gesto artístico que não só denuncia a vida danificada, mas ousa vislumbrar a transfiguração.
Na série de álbuns como Cosmic Purpose, essa intenção se explicita: não se trata de negar o abismo, mas de atravessá-lo — com som, reflexão e espírito — até que o humano se reencontre com o universal.
A vida ainda não vive
Ainda não vivemos. Ainda sobrevivemos sob os comandos do desempenho e do consumo. Mas ao nomear esse não-viver, ao fazer dele arte, crítica e reflexão, abrimos rachaduras no concreto.
Como diz Adorno: "A única filosofia que ainda é possível seria tentar ver tudo como se o víssemos pela primeira vez."
Ver de novo. Ouvir de novo. Sentir de novo. Criar de novo. E quem sabe, um dia, viver.
Explicitando:
Chamar este tempo de Era do Liso é nomear um mundo que se tornou excessivamente polido, transparente e uniforme — onde as experiências humanas parecem deslizar sem resistência. A imagem “lisa” é a do excesso de positividade, da comunicação instantânea e da superficialidade estética.
É o tempo da autoexposição contínua, da performance digital, da exaustão silenciosa e do pensamento sem atrito. Esta expressão, inspirada nos escritos de Byung-Chul Han, marca um contraste com tudo aquilo que carrega espessura, rugosidade, negatividade — e que, portanto, resiste. É nesse ponto de atrito que a obra de Adorno e a minha música se encontram: como gestos que recusam a leveza compulsória do presente, afirmando a complexidade, o silêncio, a densidade e o enigma.
Este ensaio é, pois, uma tentativa de refletir esse embate entre a era da suavização total e o chamado por experiências mais autênticas, redentoras e cósmicas.

Interessante. Só acho menos complexa e mais visível a "realidade líquida" do Bauman do que a "realidade danificada" do Adorno.