Governamentalidade Algorítmica: Da Biopolítica à Modulação Digital - Capítulo 7
- carlospessegatti
- 18 de jun.
- 4 min de leitura

Capítulo 7 — A Música na Era Algorítmica: Da Autonomia Criativa à Indução Preditiva
“Não basta compor sons. É preciso desmontar as escutas.”— Michel Chion
“A indústria cultural não produz arte, mas mercadoria. E o algoritmo não sugere desejos, ele os pré-fabrica.”— Theodor Adorno (reformulado em tempos digitais)
1. Introdução: O som como dado, a escuta como mercadoria
O campo musical, historicamente vinculado a formas de expressão subjetiva e à experimentação estética, encontra-se hoje imerso em um ecossistema moldado por fluxos de dados, machine learning e modulações comportamentais. O som, antes compreendido como linguagem artística e campo de invenção, é cada vez mais tratado como input interpretável, previsível e recombinável pelas infraestruturas algorítmicas das grandes plataformas.
O que está em jogo, aqui, não é apenas a forma como a música é distribuída, mas a própria forma como ela é criada, percebida e valorizada. Vivemos um tempo em que o algoritmo não apenas recomenda, mas condiciona o gosto, orienta a escuta e, mais recentemente, participa do processo de criação sonora.
2. Do streaming à predição afetiva: A reconfiguração da escuta
Com o advento do streaming musical, principalmente plataformas como Spotify, YouTube Music e Apple Music, instaurou-se uma nova lógica de mediação entre obra e ouvinte. A curadoria tradicional (crítica musical, rádios, revistas especializadas) foi substituída por sistemas automatizados de recomendação, baseados em históricos de escuta, padrões de comportamento e dados contextuais (horário, clima, localização, batimentos cardíacos)[¹].
Esse processo não apenas reorganizou o modo como ouvimos, mas reconfigurou o modo como desejamos ouvir: o gosto deixa de ser construído socialmente e se torna personalizado via algoritmos, em um processo que molda subjetividades de forma silenciosa e contínua.
Estudo de caso: O Spotify e o capitalismo preditivoUma análise de 2022 publicada no Big Data & Society por Eriksson & Johansson aponta que o Spotify desenvolve “modelos preditivos de escuta emocional”, utilizando dados fisiológicos e contextuais dos usuários. A proposta de playlists como "Daily Mix" ou "Songs to Make You Smile" não é neutra: é um exercício de modulação afetiva preditiva com implicações éticas e estéticas profundas[²].
3. A composição assistida por IA: Criatividade ou automatização?
Sistemas como Aiva, Amper, Suno, Riffusion, Soundraw ou o poderoso Suno AI, acessível a músicos e não-músicos, estão alterando profundamente os limites da composição musical. A questão que se impõe não é apenas se a IA “compõe bem”, mas que tipo de música ela tende a criar — e para quem.
Esses sistemas são treinados sobre vastas bases de dados musicais, quase sempre ocidentais, mid-tempo, tonal, e com forte aderência à lógica comercial. Resultado: a IA tende à repetição da média, evitando rupturas formais, dissonâncias extremas ou estruturas incomuns. Em outras palavras, a IA não cria diferença, mas reforça padrões normativos.
Nota de rodapé: A noção de “média” como paradigma estético remonta às críticas de Adorno à indústria cultural, que “pasteuriza” a experiência musical ao padronizar a escuta segundo o consumo massificado. O algoritmo, nesse caso, não inventa, mas reinscreve a lógica do mesmo sob a aparência da personalização.
4. Música e modulação digital: Deleuze revisto na era do som
A análise de Gilles Deleuze sobre as “sociedades de controle” é crucial para compreender o estágio atual da governamentalidade musical. Em vez de repressão ou censura explícita, o que temos é modulação contínua: o algoritmo não proíbe; ele sugere, antecipa, desvia.
Na música, isso significa que as escolhas sonoras são moduladas pela interface — um botão de “skip”, uma lista automática, uma repetição de faixas sugeridas. Cria-se uma bolha de escuta na qual o novo só é aceito se vier revestido da familiaridade do já ouvido. A diferença radical se torna inaudível.
5. Resistências algorítmicas e reinvenções sonoras
Apesar do cenário de captura e modulação, artistas e pensadores têm proposto alternativas críticas à lógica algorítmica dominante:
Composição com ruídos não catalogáveis: artistas como Holly Herndon e Matmos incorporam sons que confundem os sistemas de categorização algorítmica.
Subversão de metadados: músicos independentes têm inserido “tags falsas” para ludibriar os sistemas de recomendação e expor os mecanismos de classificação invisíveis[³].
Música generativa crítica: algumas performances utilizam a própria IA para criar obras que se autorrefletem criticamente, como em “AI and I” de Jennifer Walshe, onde a compositora dialoga com seus próprios clones sonoros criados por algoritmos.
Estudo de caso: Sound Studies e desobediência sonora - No campo teórico, autores como Brandon LaBelle e Steve Goodman discutem o conceito de “desobediência sônica” — práticas sonoras que desafiam os regimes de escuta capitalista e abrem espaço para outras formas de presença, memória e política do som[⁴].
6. O paradoxo contemporâneo: entre o controle e a criação
Estamos diante de um duplo paradoxo musical na era algorítmica:
Quanto mais dados temos sobre a escuta, menos ouvimos o imprevisível.
Quanto mais fácil é compor com IA, mais difícil é manter a singularidade artística.
A música, nesse cenário, pode tanto se tornar mais uma engrenagem do capitalismo de vigilância quanto um território de resistência estética, onde a radicalidade da invenção sonora desafie a lógica preditiva e algoritmicamente induzida.
7. Considerações finais: Escutar como gesto ético
A pergunta que nos atravessa ao final deste capítulo é: como escutar de maneira não capturável? Como produzir música que rompa com os regimes do previsível?
Talvez a resposta esteja em reaprender a escutar — não como hábito automático ou prazer modulado, mas como gesto ético, estético e político. Uma escuta que valorize o ruído, a diferença, o erro e a surpresa. Uma escuta que produza o inaudito.
Notas de rodapé
[¹] GRAHAM, M. (2021). Digital Domination and the Algorithmic Gaze. Journal of Digital Society.[²] ERIKSSON, M. & JOHANSSON, A. (2022). Spotify and the Emotional Economy of Listening. Big Data & Society.[³] WATKINS, H. (2020). Tagging Against the Machine: Algorithmic Subversion in Music Platforms. Journal of Platform Studies.[⁴] LABELLE, B. (2018). Sonic Agency: Sound and Emergent Forms of Resistance. Goldsmiths Press.
Bibliografia complementar
ADORNO, T. & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento.
DELANDA, M. A Thousand Years of Nonlinear History.
DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle.
GOODMAN, S. Sonic Warfare: Sound, Affect, and the Ecology of Fear.
HERNDON, H. & DRYHURST, M. Interdependence Podcast (vários episódios sobre música e IA).
ROUZÉ, V. The Music Industry in the Digital Age: Systemic Mutations and Artistic Autonomy.
ZUBOFF, S. The Age of Surveillance Capitalism.

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