Entre o Sagrado e o Profano: A Rebeldia Musical de Lassus, Josquin, Tallis e Palestrina
- carlospessegatti
- há 10 horas
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Quando a música desafiou o monopólio espiritual da Igreja na Idade Média e no Renascimento
A história da música europeia entre a Baixa Idade Média e o Renascimento não pode ser contada sem compreender o papel central da Igreja Católica. Durante séculos, ela monopolizou a fé e ditou os rumos da cultura, controlando com rigor o que se podia ou não criar no campo sonoro.
O Canto Gregoriano, austero, monódico, sem variações emocionais explícitas, foi o modelo oficial de expressão musical. O riso, a melancolia ou a exaltação eram vistos como perigos, pois a música deveria conduzir apenas à contemplação do divino, jamais à expressão humana plena.
Para quem desejava viver da música, havia dois caminhos: servir a um patrono laico – um monarca, um nobre – ou entrar nos quadros da Igreja, em conventos e capelas. Nesse dilema, muitos dos grandes nomes do Renascimento optaram por um meio-termo: trabalhar dentro das instituições eclesiásticas, mas,
paralelamente, compor obras que escapavam às restrições impostas.
Foi nesse espaço de tensão que surgiram figuras como Josquin des Prez, Orlande de Lassus, Thomas Tallis e Giovanni Pierluigi da Palestrina, mestres que reinventaram a linguagem musical de sua época.
Josquin des Prez (c. 1450–1521): o humanista das vozes
Josquin Lebloitte, dito Josquin des Prez ou Josquin des Prés (Beaurevoir ?, Picardia, c.1450 - Condé-sur-L`Escaut, 27 de agosto de 1521), frequentemente designado simplesmente como Josquin, foi um músico franco-flamengo da Renascença.
É o compositor europeu mais célebre entre Guillaume Dufay (1397 — 1474) e Palestrina (1525 - 1594). Geralmente considerado como a figura central da Escola franco-flamenga, é o primeiro grande mestre da polifonia vocal dos primórdios do Renascimento.
Chamado de o “pai da polifonia renascentista”, Josquin foi mestre em usar o contraponto e o cânone, criando obras em que cada voz possuía autonomia melódica.
Obras principais: Missa Pange Lingua, Ave Maria… virgo serena, Miserere mei Deus.
Sua música combinava devoção e emoção humana, ecoando o espírito do Humanismo Renascentista, que recolocava o indivíduo no centro da experiência.
Diferente do rígido canto monódico, Josquin deu espaço ao drama e ao afeto, fundindo sagrado e profano.
Orlande de Lassus (c. 1532–1594): o cosmopolita irreverente
Orlando di Lasso (também Orlandus Lassus, Orlande de Lassus, Roland de Lassus, ou Roland Delattre) nasceu em 1532 (possivelmente em 1530) e morreu no dia 14 de junho de 1594 foi um compositor franco-flamengo de música renascentista. Junto com Palestrina (da escola romana), é considerado hoje o maior representante do estilo polifônico maduro da escola-franco-flamenga, e era um dos músicos mais famosos e influentes na Europa no final do Século XVI.
Obras principais: Lagrime di San Pietro (madrigais espirituais), Prophetiae Sibyllarum, além de madrigais italianos e chansons francesas.
Em Prophetiae Sibyllarum, usou ousados cromatismos – quase “proibidos” para a época – para criar atmosferas carregadas de emoção.
Lassus encarnou a figura do artista livre, ainda que amparado por patronos, abrindo a música às paixões humanas.
Thomas Tallis (c. 1505–1585): a resistência inglesa
Tallis viveu em um dos períodos mais turbulentos da Inglaterra, atravessando os reinados de Henrique VIII, Eduardo VI, Maria I e Isabel I.
Obras principais: Spem in Alium (um moteto monumental a 40 vozes), Lamentations of Jeremiah, hinos anglicanos e peças latinas para o rito católico.
Soube adaptar-se às mudanças religiosas impostas pela Reforma Anglicana, compondo tanto para a Igreja Católica quanto para a Igreja da Inglaterra.
Sua música é marcada por riqueza coral e profundidade espiritual, demonstrando como a arte podia sobreviver mesmo em meio a perseguições e censuras.
Giovanni Pierluigi da Palestrina (c. 1525–1594): o diplomata da polifonia
Palestrina foi o compositor mais associado ao Concílio de Trento (1545–1563), evento central da Contrarreforma. Nesse concílio, alguns cardeais defendiam a abolição da polifonia na liturgia, acusando-a de obscurecer a compreensão da Palavra de Deus.
Obras principais: Missa Papae Marcelli, Stabat Mater, mais de 100 missas e 250 motetos.
A Missa Papae Marcelli teria sido apresentada como prova de que a polifonia podia manter a clareza do texto sagrado, convencendo os padres conciliares a não abolir o gênero.
Palestrina, longe de ser apenas obediente, soube negociar com o poder: manteve-se fiel à fé, mas dentro dela produziu uma música de beleza inigualável, que se tornaria modelo da liturgia católica até hoje.
Documentos históricos e o poder da música
Concílio de Trento (1545–1563): além das questões dogmáticas, tratou da música sacra, exigindo simplicidade, clareza textual e rejeição de elementos considerados profanos. Foi nesse contexto que Palestrina brilhou como conciliador.
Reforma Protestante (1517): a revolta de Lutero também tinha dimensão musical. Ele próprio compôs hinos em língua alemã, como Ein feste Burg ist unser Gott, defendendo que a música deveria ser acessível ao povo.
Contrarreforma: em resposta à Reforma, a Igreja reforçou o controle cultural, mas também incentivou a produção artística como arma de catequese. Foi neste espaço que os compositores encontraram brechas para inovar.
Rebeldia e poder: a música como fissura no domínio eclesiástico
Esses quatro mestres romperam a linearidade do Canto Gregoriano e abriram espaço para o florescimento da polifonia. Seus contrapontos e cânones eram mais do que exercícios técnicos: eram gestos de liberdade, uma forma de inserir a emoção humana em um tempo em que a Igreja tentava sufocá-la.
O paradoxo é que muitas dessas obras “apócrifas” ou não oficialmente reconhecidas foram preservadas justamente dentro das próprias instituições eclesiásticas. Hoje, na Capela Sistina, encontra-se uma vasta coleção de manuscritos desses compositores, memória de uma resistência estética silenciosa.
Entre o controle e a liberdade
A trajetória de Josquin, Lassus, Tallis e Palestrina revela que a história da música não é apenas a evolução de estilos, mas também a luta constante entre dominação e criatividade. Se a Igreja pretendia domesticar o som, esses compositores provaram que a música é, por natureza, indomável.
No entrechoque entre fé e liberdade, nasceu uma das mais ricas tradições musicais da humanidade – um patrimônio que ecoa até hoje, lembrando-nos de que a arte sempre encontra um caminho para escapar às grades do poder.
Quadro Comparativo: Mestres da Polifonia entre o Sagrado e o Profano
Compositor | Período / Datas | Principais Obras | Contexto Histórico | Contribuições Musicais |
Josquin des Prez | c. 1450–1521 | Missa Pange Lingua, Ave Maria… virgo serena, Miserere mei Deus | Humanismo Renascentista; difusão da imprensa musical (Petrucci, 1501) | Mestre do contraponto; integração de emoção humana na música sacra; cânones e motetos em línguas vernáculas. |
Orlande de Lassus | 1532–1594 | Lagrime di San Pietro, Prophetiae Sibyllarum, madrigais e chansons | Cosmopolita: atuou em cortes da Itália, França e Alemanha | Grande diversidade estilística; ousadia cromática; combinação entre espiritualidade e paixões humanas. |
Thomas Tallis | c. 1505–1585 | Spem in Alium (40 vozes), Lamentations of Jeremiah, hinos anglicanos | Reforma Anglicana e mudanças religiosas na Inglaterra | Criador de texturas corais complexas; adaptabilidade entre catolicismo e anglicanismo; resistência artística em tempos de censura. |
Giovanni Pierluigi da Palestrina | 1525–1594 | Missa Papae Marcelli, Stabat Mater, mais de 100 missas e 250 motetos | Concílio de Trento (1545–1563); Contrarreforma | “Diplomata da polifonia”; conciliou clareza textual e beleza polifônica; influenciou séculos de música sacra católica. |
Esse quadro sintetiza bem o contraste entre poder e liberdade, mostrando como cada compositor encontrou um caminho próprio para inovar dentro – ou apesar – das restrições da Igreja.

Josquim des Prez - Missa Pange Lingua
Orlande de Lassus - Prophetiae Sibyllarum
Thomas Tallis - Spem in Allium
Giovanni Pierluigi da Palestrina - Stabat Mater
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