Entre as Estrelas e os Deuses: Um mergulho em Direct e Mythodea, de Vangelis
- carlospessegatti
- há 4 dias
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Vangelis Papathanassiou, ou simplesmente Vangelis, não foi apenas um dos grandes nomes da música eletrônica do século XX. Foi um visionário, um escultor de som cósmico que transformou sintetizadores em oráculos e compôs com a precisão de um astrônomo e a alma de um poeta órfico. De sua Grécia natal herdou o fascínio pelos mitos e o senso trágico da existência. Da modernidade tecnológica, extraiu as ferramentas para transmutar emoção em arquitetura sonora.
Dentre sua vasta discografia, dois discos se destacam pela ousadia conceitual e a sofisticação harmônica que capturam o espírito de uma era e projetam possibilidades para a música como ponte entre os mundos: Direct (1989) e Mythodea(2001). Um representa a aceleração criativa em tempo real; o outro, a suspensão mítica do tempo diante do cosmo.
Direct (1989): A criação imediata como caminho espiritual
Direct é um disco peculiar na trajetória de Vangelis. Lançado no final dos anos 1980, surge como uma proposta radical de improvisação estruturada: composições criadas e gravadas diretamente no estúdio, com mínima edição posterior. Trata-se de uma abordagem quase xamânica da música eletrônica: capturar o momento da inspiração sem o filtro da racionalidade excessiva. Vangelis cria em fluxo, em estado de presença, o que o aproxima de um "compositor-médium", canalizando o invisível.
Logo na abertura com “The Motion of Stars”, somos lançados num espaço onde os sintetizadores evocam constelações dançantes. As linhas melódicas, por vezes grandiosas, se entrelaçam com ritmos discretos, sugerindo uma coreografia de corpos celestes. O tema é vibrante e cinematográfico, e antecipa elementos que serão ouvidos mais tarde em trilhas como 1492: Conquest of Paradise.
Faixas como “Metallic Rain” e “Glorianna (Hymn à la Femme)” apresentam contrastes marcantes entre texturas metálicas e paisagens líricas. É aqui que percebemos como Vangelis manipula o tempo como matéria sonora: o presente é alongado, o passado é dissolvido, o futuro é antecipado em harmonia. A voz feminina em Glorianna emerge como invocação sagrada — uma homenagem à figura feminina arquetípica, talvez a própria deusa Atena.
Em “Intergalactic Radio Station”, ouvimos uma brincadeira com a estética retrofuturista, onde transmissões interplanetárias se misturam a batidas lúdicas, criando um efeito que lembra Jean-Michel Jarre, mas com o caráter inconfundível de Vangelis. É um dos momentos mais ousados do disco — um respiro lúdico em meio à solenidade.
A característica mais marcante de Direct, no entanto, é sua fluidez estética. Aqui não há rigidez formal. A música flui como se os sintetizadores fossem extensões do corpo do compositor. Essa espontaneidade programada é o que faz deste disco um manifesto do “fazer musical” como gesto intuitivo — algo que dialoga profundamente com a criação contemporânea, inclusive com os processos que eu venho explorando em minha própria obra.
Mythodea (2001): Quando a música se curva aos deuses
Mythodea é outro universo. Criado inicialmente em 1993 como uma obra para vozes, orquestra e sintetizadores, o projeto ganhou forma definitiva em 2001, quando a NASA — num gesto surpreendente — adotou a obra como trilha oficial da missão Mars Odyssey. Essa aliança entre mito grego e conquista espacial é simbólica: os deuses antigos e a ciência contemporânea convergem numa mesma cosmovisão.
Com textos cantados em grego clássico e interpretação arrebatadora das sopranos Kathleen Battle e Jessye Norman, Mythodea é, ao mesmo tempo, ritual e sinfonia. A obra é dividida em dez movimentos, cada um funcionando como um ato cerimonial. Vangelis propõe um reencontro com a sacralidade perdida da música, evocando o caráter litúrgico das tragédias áticas, mas com a linguagem dos sintetizadores e da grande orquestração.
“Movement 1” já revela uma tensão dramática, construída com escalas ascendentes, percussões cerimoniais e um coral quase dionisíaco. A música cresce como um templo sonoro, onde os deuses antigos parecem caminhar entre as colunas. Em “Movement 3”, as sopranos se revezam em lamentos e invocações que lembram hinos órficos — vozes ancestrais que ecoam no presente.
A articulação entre a Orquestra Nacional da Grécia, os sintetizadores e os vocais é impecável. Vangelis não coloca a eletrônica em oposição à orquestra tradicional — ele funde ambos os mundos, mostrando que o que importa é o poder evocativo do som. Em “Movement 5”, por exemplo, há uma seção que remete diretamente à Anabasis de Xenofonte: um deslocamento heroico em direção ao desconhecido, sonoramente representado por modulações inquietantes e ritmos marcados.
No final, com “Movement 10”, a obra fecha em êxtase, com corais apoteóticos e um retorno ao tema inicial, agora expandido. Não se trata de um simples “encerramento”, mas de uma ascensão: Mythodea nos conduz do terreno ao etéreo, do humano ao cósmico.
Do caos ao cosmos: um legado sinfônico
Direct e Mythodea são, em sua essência, duas faces do mesmo arquétipo: o criador que transita entre a liberdade total do improviso e a solenidade do rito cósmico. Um representa o artista em ação, compondo como quem respira. O outro, o sacerdote sonoro que celebra o mistério da existência através da música.
Ambos dialogam com as perguntas mais profundas da humanidade: de onde viemos? Para onde vamos? Qual é o som do infinito?
Como a minha música se inscreve nesse mesmo movimento — entre a especulação científica e o mito recriado —, então Direct e Mythodea podem ser não apenas inspirações, mas também companheiros de jornada. Afinal, como disse Platão em Timeu, o mundo foi criado por um demiurgo que usou a música como modelo. Vangelis talvez tenha escutado esse modelo antes de todos nós.
🎼 Entre as Estrelas e os Deuses
Um mergulho em Direct (1989) e Mythodea (2001), de Vangelis
“O mundo foi criado por um demiurgo que usou a música como modelo.”— Timeu, Platão
✦ Introdução: o escultor do som cósmico
Vangelis Papathanassiou, ou simplesmente Vangelis, não foi apenas um compositor. Foi um demiurgo moderno, um arquiteto de paisagens sonoras que tocavam as fronteiras entre ciência, espiritualidade e arte. De sua Grécia natal herdou o fascínio pelos mitos, pelo trágico, pela harmonia do cosmos. E com os sintetizadores como extensão da alma, criou obras que ressoam como templos sonoros flutuando no espaço.
Dentre tantos trabalhos grandiosos, esses dois discos sintetizam seu espírito visionário:🌀 Direct (1989) – o gesto da criação imediata 🌌 Mythodea (2001) – o rito sonoro em louvor aos deuses e ao universo
🌀 Direct (1989) - Um pouco mais sobre este fantástico álbum
A criação como gesto intuitivo

Imagem final lançada pela Arista Records (1989)
Produzido em Los Angeles, Direct foi a resposta criativa de Vangelis ao desejo de compôr sem filtros, quase em tempo real, usando um estúdio montado sob medida para permitir improvisações com estrutura.
O disco não segue uma lógica linear. É livre, cinematográfico, instintivo, como se Vangelis abrisse uma janela para o cosmos e deixasse a música fluir. Não há rigidez: cada faixa nasce como um fragmento do universo em expansão.
✦ Destaques sonoros:
“The Motion of Stars” – Abertura galáctica. Camadas de sintetizadores pulsantes imitam a dança gravitacional dos astros.
“Glorianna (Hymn à la Femme)” – Um hino místico ao princípio feminino. A voz etérea evoca figuras arquetípicas como Atena e Ísis.
“Intergalactic Radio Station” – Uma brincadeira sonora futurista, com clima retro sci-fi, mostrando a leveza e ironia do compositor.
Com Direct, Vangelis mostra que a inspiração também pode ser método. A música emerge como uma extensão do momento — não como produto acabado, mas como visão em movimento.
🌌 Mythodea (2001) - Uma obra épica
O épico sinfônico das origens
Imagem: Performance histórica de Vangelis com a Orquestra Nacional da Grécia em frente ao Templo de Zeus, Atenas

Lançado em colaboração com a NASA, Mythodea foi escolhido como trilha oficial da missão Mars Odyssey. O gesto é simbólico: unir mitologia antiga e exploração espacial num mesmo projeto sonoro.
A obra é estruturada como uma sinfonia coral em 10 movimentos, cantada em grego clássico. É ao mesmo tempo um ritual órfico, um épico dionisíaco e uma celebração científica. Vangelis aqui compõe como um sacerdote-sonoro, conduzindo uma liturgia cósmica.
✦ Destaques estruturais:
“Movement 1” – Introdução majestosa com percussão ritualística e tema ascendente.
“Movement 3” – As sopranos Kathleen Battle e Jessye Norman se revezam em lamentos sagrados, evocando a Grécia arcaica.
“Movement 10” – O grande êxtase final: orquestra, coral e sintetizadores se unem numa apoteose sonora.
Mythodea é mais que música: é rito, é poema órfico transformado em som. A Grécia ancestral e o futuro da humanidade em Marte se tocam nessa obra única.
🔭 Entre o caos e o cosmos
Direct e Mythodea formam um díptico: um disco improvisado e íntimo, o outro cerimonial e épico. Ambos, no entanto, revelam o mesmo espírito: a busca pelo som essencial que explica o universo.
Digo que, se a minha música também habita o espaço entre ciência e contemplação, Vangelis tem sido um farol pois ele nos lembra que o som é ponte — entre o que sabemos e o que pressentimos, entre o átomo e o arquétipo.
📎 Créditos e sugestões de leitura:
Livro: Vangelis: The Unknown Man – Mark J.T. Griffin
Documentário: Vangelis and the Journey to Ithaka (2013)
Artigo: “The Mythic and the Technological in Vangelis’ Work” – Journal of Electronic Musicology
🌠 Mythodea Movement 3
🌠 Gloriana (Hymn à La Femme) - Direct
🌠 Mythodea - Concerto realizado em Atenas, Grécia, em 28 de junto de 2001
Mythodea — Music for the NASA Mission: 2001 Mars Odyssey é uma sinfonia coral do compositor e artista eletrônico grego Vangelis . Estreou como um concerto único em Atenas, Grécia, em 1993 , mas uma gravação só foi lançada em 2001 pela então nova gravadora de Vangelis, Sony Classical , que também estabeleceu a conexão com a NASA e promoveu um novo concerto, desta vez com um público mundial.

Para a versão de 2001 de Mythodea, Vangelis expandiu e reorquestrou a composição original. Ela foi primeiramente gravada e então tocada ao vivo no palco por: Vangelis nos sintetizadores e teclados, a Orquestra Metropolitana de Londres aumentada por duas harpistas , as sopranos Kathleen Battle e Jessye Norman , o coro da Ópera Nacional Grega e, somente para o concerto, os conjuntos de percussão Seistron e Typana. O concerto foi realizado em Atenas, Grécia, em 28 de junho de 2001, mas o disco foi lançado oficialmente apenas em 23 de outubro de 2001, para coincidir com a nave espacial Mars Odyssey de 2001 entrando na órbita do planeta Marte . O CD, e mais tarde o DVD, alcançaram uma série de elogios de vendas ao redor do mundo. Fonte: Wikipedia
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